Onde será nossa morada eterna?
οὐρανὸν καινὸν καὶ γῆν καινήν
(“Um céu novo e uma terra nova”)
A mensagem do apocalipse até o capítulo 20 nos apresenta uma
mistura muito notável de luz, do que acontecerá no “lá e então” com o cuidado
de Deus no “aqui e agora”. João chega ao clímax do que acontecerá na consumação
dos séculos e oferece ao leitor uma representação do perfeito, triunfante e
eterno estado que a igreja terá no mundo porvir, no qual os santos fiéis e
servos de Deus não só verão, mas desfrutarão da perfeita santidade e felicidade
desse novo mundo.[1]
Nos capítulos
finais de Isaías, Deus prometeu que iria “criar novos
céus e nova terra” que duraria para sempre diante
dele (Is 66.17, 22). O cumprimento desta
promessa agora começa a se desdobrar na visão de João da
Nova Jerusalém, que descia do céu para tomar o seu lugar em cima
de uma nova terra.
A grande pergunta
a ser respondida aqui é se esse novo universo é sinônimo de uma nova criação ou
a restauração completa e perfeita da presente criação. Em outras palavras, o universo atual será totalmente aniquilado, de forma que o novo universo
será completamente outro, ou será o novo universo essencialmente o mesmo cosmos
que o presente, apenas renovado e purificado?[2] Essa tem sido uma questão de grande
controvérsia entre os exegetas e comentaristas, e sua resposta não é tão obvia
como a primeira vista pareça ser.
Segundo
Hoekema, os teólogos luteranos, frequentemente, entendem “novo” como um
sinônimo da criação de Gênesis: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”
(Gn. 1.1 – ARA). O verbo בָּרָא
(bara – “criar”) expressa a criação do nada (ex nihilo), uma ideia que é vista claramente nas passagens relativas à
criação em escala cósmica.[3]
Estes teólogos entendem, então, que Deus criará um novo universo “ex nihilo”. A implicação desta tese é que ela os leva ao conceito do “aniquilamento” do
presente cosmos e de uma descontinuidade completa entre o velho universo e o
novo.[4]
Estes exegetas apelam, ainda, para passagens tais como: “O
sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do
firmamento e os poderes dos céus serão abalados” (Mateus 24.29) e “Os céus
incendiados serão desfeitos e os elementos abrasados se derreterão” (2 Pedro
3.12). A conclusão, portanto, é que eventos cataclísmicos acompanharão a
destruição da terra atual.[5]
Dr. John F. Walvoord, por exemplo,
postula que o novo céu e nova terra apresentados em apocalipse 21.1, não são,
evidentemente, simplesmente o velho céu e da terra renovado, mas um ato de nova
criação.[6]
Em contra partida, a este pensamento, a maioria dos teólogos
reformados tem rejeitado o conceito de “aniquilamento total” em favor do
conceito de renovação. A primeira, razão para isso, é que tanto em 2 Pedro 3.13
como em Apocalipse 21.1 o termo grego utilizado para designar a novidade do
cosmos não é νέος (neos – “novo”,
“nascido recentemente”, “jovem”, “juvenil”), [7] mas sim καινὸν (kainos - “novo”,
“fresco”, “recente”, “não usado”, “não surrado”)[8].
É verdade que tanto νέος como καινὸν às
vezes são traduzidos da mesma forma, mas há uma diferença entres estas
palavras. A palavra νέος, normalmente, significa “novo em tempo ou origem”[9] e
“sem existência previa”,[10] enquanto
que a palavra καινὸν, de modo geral, significa novo em natureza ou em
qualidade.[11]
Assim, expressão οὐρανὸν καινὸν καὶ γῆν καινήν (ouranon
kainon kai gen kainen - “Novo céu e nova terra”, Ap. 21.1 - ARA) significa,
portanto, não a emergência de um cosmos totalmente outro, diferente do atual,
mas a criação de um universo que, embora tenha sido gloriosamente renovado,
está em continuidade com o universo presente.[12]
Nas palavras de Morris é “uma nova edição da mesma coisa”. [13]
Beale também observa que os contrastantes “primeiro e
segundo” e “velho e novo” expressar esta distinção qualitativa em outros
lugares em Apocalipse e na literatura bíblica.[14] Além disso, no texto grego as palavras οὐρανὸν (“céu”) e γῆν (“terra”)
estão sem o artigo destacando, também, o aspecto da qualidade, em vez de
identidade. Literalmente, é “céu novo e uma terra nova” e não “o
novo céu e a nova terra”. Em outras palavras, o uso do adjetivo καινὸν (kainos
- “novo”) mais esta construção com a ausência do artigo serve para
enfatizar ainda mais a diferença qualitativa.[15]
Outro
aspecto que aponta para uma restauração da terra e não o seu aniquilamento é o
princípio hermenêutico da analogia das escrituras.[16]
Textos, como por exemplo, Romanos 8. 20-23 e Colossenses 1.20 falam de uma
restauração do universo e não de seu aniquilamento. Lenski a afirma que os
exegetas que negarem a restauração da terra e postularem uma criação “ex nihilo” entram em conflito
com Romanos 8.20-23.[17] Em Romanos 8.21 Paulo escreve: “na esperança de que a própria criação será
redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de
Deus”.[18] A
palavra a ser destacada aqui é “ελευθερωθησεται”
que significa “colocar em liberdade: do domínio do pecado”[19]
e não ser aniquilada.
Hoekema comentado sobre este escrito de Paulo corretamente
assevera:
Quando
ele nos diz que a criação aguarda, com ansiedade, pela revelação dos filhos de
Deus a fim de que possa ser liberta do cativeiro da corrupção (vv. 20,21), ele
está dizendo que é a criação atual quem será libertada da corrupção no eschaton,
não uma criação totalmente diferente.[20]
Outro aguamento
a favor da restauração são as analogias do que aconteceu com o crente na conversão
e acontecerá na ressurreição. Em relação a primeira ideia, Paulo em 2
Coríntios 5.17 diz: “E,
assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura (καινὴ κτίσις);
as coisas antigas já passaram (παρῆλθεν – “morrer”,
“perecer”); eis que se fizeram novas (καινά)”.[21] Isso não significa que, quando fomos convertidos a Cristo,
deixamos de ser ou aniquilados por completo, mas transformados (γέγονεν
καινά - fizeram novas)
de dentro para fora. Da mesma forma, os céus e a terra será radicalmente
alterado e gloriosamente renovado. Este presente do universo sofrerá uma
vasta renovação, um renascimento.
No que se refere a ressurreição do corpo a mesma ideia pode
ser entendida. Sabe-se que haverá tanto continuidade como descontinuidade entre
o corpo atual e o corpo ressurreto.[22] Para
Hoekema, “as diferenças entre nossos corpos atuais e nossos corpos ressurretos,
por mais maravilhosas que sejam não retiram a continuidade: somos nós que
seremos ressuscitados, e somos nós que estaremos para sempre com o Senhor”.
Essa argumento ganha força com a intima relação feita por
Paulo em Romanos 8. 22,23:
Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta
angústias até agora. E não somente ela, mas também nós,
que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo,
aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.[23]
(destaques nossos)
Assim, aqueles ressuscitados com Cristo não serão um
conjunto totalmente novo de seres humanos, mas sim o povo de Deus que viveu
nesta terra. A título de analogia, seria de se esperar que a nova terra não
será totalmente diferente da terra atual, mas será a terra presente
maravilhosamente renovada (καινὸν).[24]
Ladd
assevera que no pensamento
hebraico via “uma unidade essencial entre homem e natureza”.[25]
Johnson, parece ter a mesma ideia, ao dizer que o apóstolo vê o homem e a
criação ligados entre si. O pecado do homem afetou toda a criação (cf. Gn
3,17-19). Respondendo a isso, a redenção afeta não só o homem, mas o universo
criado. A própria criação geme e está cheia de dor enquanto espera o dia da sua
restauração (cf. Rm 8.22) e “não somente
ela, mas também nós”.[26]
A dificuldade desta tese que temos defendido até aqui é a
corelação com Isaias 65.17: “Pois eis que eu crio (בָּרָא -
bara –criação do nada ou ex nihilo) novos céus e nova terra; e não haverá
lembrança das coisas passadas, jamais haverá memória delas”. Esse
texto, assim, a primeira vista parece que o universo seria criado do nada. Dissemos
que καινὸν, via de
regra, significa novo em natureza ou em qualidade e não no sentido de inédito.
A pergunta é: “O profeta defende a ideia de uma criação nova a partir do nada?”
Responde está
questão não é nem simples nem fácil. Seria necessária uma grande discussão
sobre o assunto. Por ora, precisamos entender a que o profeta se refere e como
o termo בָּרָא (bara) também foi usado em outros lugares. Segundo Gary T.
Meadors, o profeta provavelmente, chama a atenção para o relato da criação de
Gênesis 1.[27]
Nesse sentido ele olha para o passado e diante dele para o futuro. Além disso, o mesmo autor observa que o termo בָּרָא como Gênesis 1.1 é contextualmente dependente e nem sempre se aplicam como em Gênesis
1 cf. Salmo 51.10, no qual Davi ora dizendo: “Cria (בָּרָא -
bara –criação do nada ou ex nihilo) em mim, ó Deus, um coração puro e
renova dentro de mim um espírito inabalável”[28]
Além disso, a ideia de novos céus e nova terra no contexto
que aborda questões escatológicas, como por exemplo 2 Pedro 3:13, é realmente
centrado na ética. Ele postula, que 2 Pedro 3:1, 11, 14 e 17 exortam os
piedosos a viverem em função do futuro.[29]
Assim, “a cláusula final de 3.13 também destaca essa nuance observando que ela
será uma terra em que “habita a justiça”. A chamada para a ética é um tema
importante em passagens proféticas do Novo Testamento”.[30]
Em
suma, καινός (“novo”), como vimos supra, refere-se
predominantemente a uma mudança na qualidade ou essência ao invés de algo
novo que nunca tenha estado em existência. Este uso de καινός é especialmente encontrada em contextos Novo Testamento
descrevendo transição. [31] Assim,
conclui-se que καινὸν é sinônimo de uma restauração total e final e não uma criação “ex nihilo” (בָּרָא
bara – “criar do nada”). Como corretamente postulou Matthew Henry: “Pela nova terra, podemos entender um novo estado para os
corpos dos homens, bem como um paraíso para suas almas. Este mundo não é
agora recém-criado, mas recém-inaugurado, e preenchido com todos aqueles que
foram os herdeiros dele”.[32]
Rev. Jailson Santos
[1] C.f Walvoord, John
F. The New Heaven And The New Earth.
Disponível em:
Acessado em 25 de out. 2011
[3] VINE, W. E. An expository dictionary of new
testament words. Iowa: Riverside book and bible house, 1952. Disponível
na Bíblia eletrônica e-sword
[5] Ibid
[7] Strong, J. (2002; 2005). Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong. Sociedade Bíblica do
Brasil.
[8] Ibid.
[9] VINE, W. E. An expository dictionary of new
testament words. Iowa: Riverside book and bible house, 1952. Disponível
na Bíblia eletrônica e-sword
[10]
KISTEMAKER, Simon J. Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.
697.
[13]Morris, Leon: Revelation:
An Introduction and Commentary. Downers Grove, IL : InterVarsity Press,
1987 (Tyndale New Testament Commentaries 20), S. 231
[14]Beale, G. K.: The
Book of Revelation : A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.;
Carlisle, Cumbria: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 1999, S. 1039
[15] KEATHLEY III, J. Hampton. The Eternal State (Rev
21:1-22:5). Disponível em: <http://bible.org/seriespage/eternal-state-rev-211-225> Acessado em 25 de out. 2011
[16] A "analogia da Fé" é o
inter-relacionamento harmonioso de todas as doutrinas dentro dos limites das
Escrituras. As verdades Bíblicas não se chocam nem se contradizem, mas
constituem um só sistema da verdade. Os elementos controladores da
analogia da fé são: o reconhecer que o controle final se acha na Bíblia, e nela
somente; e, em segundo lugar, estar pessoalmente consciente de que tipo de
apelo está sendo feito a cada estágio do processo, para não confundir as linhas
de controle.
[17]Lenski, R. C. H.: The
Interpretation of St. John's Revelation. Columbus, O. : Lutheran Book
Concern, 1935, S. 613
[18] Sociedade Bíblica do Brasil. (1993; 2009). Almeida Revista e Atualizada 1993; Almeida
Revista e Atualizada (Ro 8:21). Sociedade Bíblica do Brasil; Barueri.
[19] VINE, W. E. An expository dictionary of new
testament words. Iowa: Riverside book and bible house, 1952. Disponível
na Bíblia eletrônica e-sword
[21] Sociedade Bíblica do Brasil. (1993; 2009). Almeida Revista e Atualizada 1993; Almeida
Revista e Atualizada (2 Co 5:17). Sociedade Bíblica do Brasil; Barueri.
[23] Sociedade Bíblica do Brasil. (1993; 2009). Almeida Revista e Atualizada 1993; Almeida
Revista e Atualizada (Ro 8:22–23). Sociedade Bíblica do Brasil; Barueri.
[25] LADD, Presence, 59 – 60 apud HOEKEMA, Anthony A. A Bíblia e o futuro. 2. ed. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 2001. p. 20.
[26] Apud KEATHLEY, J. Hampton, III. The Supremacy of the Work of Christ Part 1, The
Plenitude and Description of His Work (Col. 1:19-20). Artigo disponível em:
Acessado em: 07/03/2011
[27] MEADORS, Gary T. Baker's Evangelical Dictionary of
Biblical Theology. Editado por Walter A. Elwell. Partes da obra
disponível em: < http://bibliotecabiblica.blogspot.com/2009/12/novos-ceus-nova-terra-significado.html>
Acessado em 27 d out. 2011.
[28] Sociedade Bíblica do Brasil. (1993; 2009). Almeida Revista e Atualizada 1993; Almeida
Revista e Atualizada (Ps 51:10). Sociedade Bíblica do Brasil; Barueri.
[29] Ibid
[30] Ibid
[31]Beale, G. K.: The
Book of Revelation : A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids, Mich.;
Carlisle, Cumbria : W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 1999, S. 1039
[32] HENRY,
Matthew. “Complete Commentary on Revelation 21” in Matthew Henry Complete Commentary on the Whole Bible. Disponível na
Bíblia eletrênica e-sword
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