Devemos Celebrar a Ceia do Senhor Online?
Devemos Celebrar a Ceia do Senhor Online?
Não é novidade para ninguém que as igrejas em todo mundo têm tido dificuldades para se reunir fisicamente. Pastores e conselhos, das mais diferentes tradições, têm buscando soluções para manter a normalidade da vida da igreja, dentro do possível. Não há um manual para isso, razão pela qual muitos estão sem saber o que fazer. Propostas para resolver os dilemas como a realização de cultos públicos, estudos bíblicos e entrega de dízimos estão sendo apresentadas. Todavia, o ineditismo da situação e o descuido com a forma como as coisas devem ser feitas podem trazer problemas graves que precisarão ser resolvidos quando tudo voltar à normalidade. Dentro desse contexto, a ideia de administrar a Ceia online é um dos assuntos em pauta que merece mais atenção. A fim de refletir sobre o assunto e contribuir de alguma maneira para a discussão deste tema, o presente “post” visa apresentar algumas razões pelas quais a Ceia do Senhor não deve ser administrada online.
1. A ceia online é uma circunstância que acaba ferindo o elemento em si.
A Confissão de Fé de Westminster afirma que “há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da Palavra, que sempre devem ser observadas” (I.VI). A gerência das circunstâncias do culto foi deixada a critério dos pastores e conselhos das igrejas locais. Por essa razão, ao longo da história da igreja determinadas mudanças foram aceitas no culto público. Entre elas pode-se mencionar a inclusão de instrumentos musicais no canto congregacional e de recursos audiovisuais na pregação. Se você concorda ou não com as mudanças esse não é o ponto. O importante aqui a ser percebido é que todas estas mudanças dizem respeito às circunstâncias do culto e não aos elementos do culto.
Isso nos conduz a uma importante pergunta: quais são os elementos essenciais do culto? Os elementos são aquelas atividades determinadas pelas Escrituras para o culto ao Senhor, que são assim definidos por nossos símbolos de fé:
– orações;
– leitura da Palavra de Deus;
– pregação da Palavra de Deus;
– cantar salmos, hinos e cânticos espirituais ou sagrados;
– celebração da Ceia (quando houver);
– ministração do batismo (quando houver);
– juramentos religiosos;
– votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões especiais;
– ofertas.
As circunstâncias, por seu turno, dizem respeito aos passos envolvidos na implementação e aplicação dos elementos e são dependentes destes. Então, as circunstâncias do culto podem mudar (deste de que a Escritura seja observada), já os elementos não podem sofrer acréscimos ou diminuições causados por uma circunstância. Por isso, creio que uma das razões para a não realização da ceia online é que este modo de administração do sacramento provoca mudanças na essência do elemento, por algumas razões que passo descrever abaixo.
2. Os pastores ordenados são os únicos que devem declarar a instituição da Ceia
A Confissão de Fé de Westminster falando sobre o papel do ministro na condução da Ceia, assevera: “Nesta ordenança o Senhor Jesus constituiu seus ministros para declarar ao povo a sua palavra de instituição, orar, abençoar os elementos, pão e vinho, e assim separá-los do comum para um uso sagrado, tomar e partir o pão, tomar o cálice dele participando também e dar ambos os elementos aos comungantes e tão somente aos que se acharem presentes na congregação” (XXIX.III).
Na mesma direção, é o Catecismo Maior de Westminster, em sua pergunta 169: "Como ordenou Cristo que o pão e o vinho fossem dados e recebidos no sacramento da ceia do Senhor?", tendo como resposta: "Cristo ordenou que os ministros da Palavra, na administração deste sacramento da ceia do Senhor, separassem o pão e o vinho do uso comum pela palavra da instituição, ações de graça e oração; que tomassem e partissem o pão e dessem, tanto este como o vinho, aos comungantes, os quais, pela mesma instituição, devem tomar e comer o pão e beber o vinho, em grata recordação de que o corpo de Cristo foi partido e dado, e o seu sangue derramado por eles”.
Perceba, então, que o pastor não deve entregar a condução de parte do culto a outras pessoas, que por mais piedosas e sinceras que sejam, não foram preparadas, nem ordenadas para tal atividade. Então, creio que a Ceia do Senhor não deve ser ministrada online, com os crentes comprando os elementos e o chefe da casa servindo estes elementos, pois cabe somente ao Ministro da Palavra declarar ao povo a palavra de instituição da Ceia, abençoar os elementos, e assim, separá-los do comum para um uso sagrado.
3. A ceia do Senhor é um elemento do culto público.
A princípio precisamos distinguir os tipos de culto e os elementos do culto público para entendermos este tópico. Há três tipos de cultos, à luz do “princípio regulador do culto”: individual, doméstico e público. No culto individual o crente entra em íntima comunhão pessoal com Deus. O culto doméstico é o ato pelo qual os membros de uma família de crentes se reúnem diariamente, em hora apropriada, para leitura da Palavra de Deus, meditação, oração e cântico de louvor (veja que aqui já há elementos essenciais). Por seu turno, o culto público "é um ato religioso, através do qual o povo de Deus adora o Senhor, entrando em comunhão com Ele, fazendo-lhe confissão de pecados e buscando, pela mediação de Jesus Cristo, o perdão, a santificação da vida e o crescimento espiritual. É a ocasião oportuna para proclamação da mensagem redentora do Evangelho de Cristo e para doutrinação e congraçamento dos crentes".
Com base nisso, se eu estiver sozinho no meu escritório em adoração a Deus, isso é culto individual e não público. E se os irmãos se juntarem a mim na meditação da Palavra (eu no meu escritório e eles na rede)? Bem, agora a atividade pode até ser “comunitária”, mas carece de elementos essenciais para ser tecnicamente um culto público. Então, mesmo que seja feito em minha casa, além da minha pregação, precisamos orar e cantar com outros irmãos (porque eu canto muito mal e porque precisa ser comunitário). Não vale a Denise e a Laura (minhas respectivas, esposa e filha) se juntarem a mim, pois neste caso é culto doméstico transmitido pela internet. Posso fazer isso e edificar o povo de Deus, mas não posso chamar essa atividade de culto público. Perceba que muitos pastores estão fazendo uma “live” de casa e chamando isso de “culto online da igreja”. O problema, como você já deve ter percebido, é que a circunstância, neste caso, faz perder de vista o aspecto litúrgico do culto (os elementos).
Neste tempo de pandemia o que os pastores devem fazer, caso seja possível, é um culto público com o menor número de pessoas possível e, excecionalmente, transmiti-lo via internet. Uso a palavra excepcional, pois a transmissão do culto público via internet é para alcançar as pessoas que não podem ir à igreja, ou que não são convertidas. Não é substituto para o ajuntamento em um culto, conforme nos ensina Hebreus 10.24,25. Não há, então, a modalidade de culto online e, diante de sua inexistência, tampouco se pode conceber a ideia de ceia online.
4. A ceia do Senhor deve ser servida no contexto da igreja.
Uma cuidadosa exegese de textos como Mt 26.26-30; Mc 14:22-26; Lc 22:14-20; At 20.7; e, especialmente, 1Co 11.17-34, nos conduz à conclusão de que o ato físico de se reunir na qualidade de povo de Deus, isto é, uma assembleia reunida em um mesmo tempo e lugar, é essencial, e não acidental para a ordenança do Senhor de partir o pão e beber o cálice. Isso fica claro em 1Coríntios 11, texto no qual Paulo se refere cinco vezes ao fato de que eles celebram a Ceia do Senhor quando todos se reúnem como igreja (1Co 11: 17, 18, 20, 33, 34). Portanto, transformar a Ceia do Senhor em algo que não seja uma refeição de toda a igreja, reunida no mesmo tempo e lugar, é administrar o sacramento diferente do que foi proposto.
O problema da ceia online, então, é que a circunstância (servir nas casas) fere profundamente a essência deste elemento de culto. A Confissão de Fé de Westminster nos orienta a não administrar a Ceia do Senhor de maneira contrária “à natureza deste sacramento e à instituição de Cristo.” (XXIX. IV). Ela assim postula no mesmo lugar: “A missa ou recepção do sacramento por um só sacerdote ou por uma só pessoa, bem como a negação do cálice ao povo, a adoração dos elementos, a elevação ou procissão deles para serem adorados e a sua conservação para qualquer uso religioso, são coisas contrárias à natureza deste sacramento e à instituição de Cristo” (XXIX. IV).
O significado das palavras de Paulo, “discernir o corpo” em 1Co 11.17-34, é fundamental no entendimento desta matéria. Alguns intérpretes as entendem como sendo uma exortação para se “distinguir a ceia do Senhor de outras refeições, isto é, não considerá-la como qualquer outra refeição.” Kistemaker parece entender assim ao asseverar que “os participantes devem fazer uma distinção clara entre o pão que eles comem na festa da fraternidade para o nutrimento do corpo físico e o pão da Ceia do Senhor em benefício do corpo de crentes.” Observe, então, que para estes intérpretes “discernir o corpo”, significa que a Ceia não é uma refeição ordinária, mas uma refeição extraordinária da comunhão do Corpo de Cristo. Neste caso, uma ceia online mal administrada pelos membros da casa poderia ferir este caráter extraordinário.
Outros intérpretes postulam que “não discernir o corpo” é desprezar a mútua comunhão que resulta da obra de Cristo, ideia que é “zipada” nas palavras “corpo de Cristo.” F. F. Bruce sumariza essa tese ao dizer que, “quando eles partiam o pão que era o símbolo do corpo de Cristo, eles relembravam seu auto-sacrifício [sic] na cruz, mas também declaravam participar todos juntos do seu corpo coletivo. Por isso, se eles, na prática, negavam a unidade que professavam simbolicamente na Ceia, estavam comendo e bebendo de modo indigno, profanando, assim, o corpo e o sangue do Senhor; se eles comiam e bebiam “sem discernir o corpo”, estavam "comendo e bebendo condenação para si mesmos”.
O termo “corpo”, neste contexto, refere-se, muito provavelmente, tanto para se dizer acerca do corpo físico de Cristo (referência ao “corpo e sangue” do Senhor em v. 27), quanto para descrever a igreja como o corpo de Cristo no sentido comunitário (como em 1Cor. 10 e 12). Ceia do Senhor é uma ilustração vívida do primeiro corpo (Cristo) que deve ser administrada no segundo (a igreja).
O argumento apresentado até aqui ganha força com a análise do imperativo “examine” a si mesmo no verso 28 de 1Coríntios 11. Esta é uma ordem à introspecção e autoavaliação. Muitas vezes, esse exame ou teste é realizado por mais de uma pessoa (1Ts 2.4; 1Tm 3.10), mas aqui ele claramente se refere às ações executadas por cada participante (cf. 1Co 3.13; 2Co 13.5; Gl 6.4). A ambiguidade do texto nos conduz em duas direções: devemos examinar se já temos o perdão de Cristo e o conhecemos verdadeiramente, e assim fazemos parte do corpo de Cristo? Ou, devemos examinar se estamos vivendo em profunda comunhão e assim estamos vivendo como quem faz parte do corpo de Cristo? Não há nenhuma evidência conclusiva que nos obriga a escolher entre estes dois pontos de vista. O texto parece dar margem para as duas coisas quando o analisamos à luz do contexto imediato e remoto. Então, ao que parece, a Ceia é tanto um momento de refletir sobre a nossa união com Cristo, como também, de ponderar sobre nossa comunhão com seu corpo, a igreja visível que se reune comunitariamente para a adoração.
Em suma, “discernir o corpo” e “examinando a si mesmo” implica tanto olhar para dentro e entender a obra salvadora de Cristo, como também olhar para fora para valorizar e aprofundar a comunhão de todo o povo de Deus, em assembleia com presença física. A Ceia online pode ser vista naturalmente como uma versão contemporânea da adoração que dispensa ajuntamento. Como observou o pastor Filipe Fontes "há uma agenda em curso para tornar individual o que Deus projetou para ser experimentado no contexto da vida comunitária", isso já está acontecendo com algumas atividades da igreja e, se não tivermos o devido cuidado, acontecerá com o culto e, consequentemente, com a Ceia.
Mas pastor, o povo de Deus está faminto e desejoso de se alimentar da mesa do Senhor. Vamos deixá-lo privado da mesa do Senhor? Essa escassez tornará o encontro a volta da mesa do Senhor ainda mais significativo quando tudo voltar ao normal. Vale a pena esperar.
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